A crescente utilização de holdings familiares como instrumento de planejamento sucessório e patrimonial tem levado à adoção de estruturas societárias que, muitas vezes, envolvem a distribuição desproporcional de lucros entre os sócios. Essa prática, embora permitida pelo ordenamento jurídico, passou a ser alvo de fiscalização sob a alegação de que, em determinados contextos, disfarçaria doações encobertas, ensejando a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).
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Em decisão paradigmática (Acórdão nº 2401-011.429), o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) reconheceu a validade da distribuição desproporcional de lucros no âmbito de sociedade de advogados, desde que haja previsão expressa no contrato social.
No caso analisado, o Fisco autuou a sociedade sob a alegação de que parte dos lucros distribuídos de forma desproporcional deveria ser considerada pró-labore, sujeita à incidência de contribuições previdenciárias. Entretanto, o CARF entendeu que, havendo autorização contratual clara e estipulação dos critérios de distribuição, a prática se encontra dentro da legalidade e não configura remuneração disfarçada.
Assim, a decisão consagra o entendimento de que a distribuição desproporcional é possível e legítima, desde que devidamente fundamentada e formalizada nos atos societários.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), no julgamento da Apelação Cível nº 1089011-58.2023.8.26.0053, realizado em 16 de dezembro de 2024, manteve autuação fiscal que exigia ITCMD sobre a distribuição desproporcional de lucros realizada por uma holding familiar. No caso, os pais, detentores de 98% do capital de uma sociedade empresária limitada, receberam apenas R$ 2 milhões cada, enquanto os dois filhos, com apenas 1% cada, receberam R$ 24 milhões cada da distribuição total de R$ 52 milhões.
O Fisco paulista entendeu que a operação escondia uma doação disfarçada, e o TJSP acolheu esse argumento, afirmando que:
Contudo, o mesmo acórdão explicitou hipóteses em que a distribuição desproporcional seria válida e não configuraria fato gerador do ITCMD, desde que presente motivo legítimo e justificável do ponto de vista negocial. Entre os exemplos mencionados pelo TJSP como situações que afastariam a caracterização como doação, estão:
O relator, frisou que, na ausência de causa econômica, e diante da desproporção extrema e injustificada, a distribuição representa uma forma de liberalidade entre os sócios, atraindo a tributação pelo ITCMD.
Em contraponto à orientação do TJSP, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), ao julgar a Apelação Cível nº 5005960-13.2022.8.24.0008, em 04 de julho de 2023, afastou a incidência do ITCMD sobre a distribuição desproporcional de lucros, adotando posição mais alinhada à autonomia privada e à liberdade contratual no âmbito societário.
O caso envolvia quatro sócios de uma empresa familiar do setor metalúrgico, os quais receberam lucros em proporções diferentes das respectivas quotas de capital. O Estado de Santa Catarina alegou que a desproporcionalidade configurava doação disfarçada, passível de tributação pelo ITCMD. Os autores da ação argumentaram que a distribuição estava respaldada por ato societário legítimo, sem qualquer intenção de liberalidade.
O relator reconheceu:
O acórdão concluiu que a distribuição de lucros, mesmo que atípica ou desigual, não representa automaticamente doação. Para que haja exigência do ITCMD, seria necessário comprovar o fato gerador específico da doação, o que não ocorreu na hipótese concreta.
Para que a distribuição desproporcional de lucros não seja descaracterizada e qualificada como doação, além do propósito negocial, é fundamental que ela seja efetivada a todos os sócios, ainda que em proporções distintas. A distribuição exclusivamente a um ou alguns sócios, com exclusão injustificada dos demais, poderá ser interpretada como liberalidade disfarçada.
Além disso, é indispensável que haja previsão expressa no contrato social autorizando a distribuição desproporcional, com definição de critérios ou autorização para deliberação dos sócios. A ausência dessa previsão costuma ser apontada pela fiscalização como fator de simulação. A deliberação que a autoriza também deve ser formalizada por escrito, preferencialmente em ata registrada.
Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, que trata da regulamentação geral do ITCMD, incluindo a menção a “benefícios desproporcionais praticados por liberalidade”. O texto prevê a possibilidade de incidência do imposto em hipóteses de cessão gratuita de lucros ou direitos sem causa econômica justificada.
O projeto ainda está pendente de análise pelo Senado Federal, existindo questionamentos acerca da constitucionalidade do projeto.
Embora a distribuição desproporcional de lucros encontre respaldo legal no artigo 1.007 do Código Civil, é recomendável que sua aplicação esteja lastreada em fundamentos negociais legítimos, formalmente previstos no contrato social e documentados em ata. A exclusão de sócios, a ausência de motivação econômica ou de cláusula contratual adequada pode levar à sua requalificação como doação, com consequente exigência do ITCMD.
As decisões judiciais ainda se mostram divergentes, com o TJSP adotando uma linha mais restritiva e o TJSC privilegiando a liberdade contratual e a autonomia dos sócios. Diante desse cenário de incerteza, é necessário que a questão venha a ser submetida ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que deverá pacificar o entendimento sobre os limites e requisitos da distribuição desproporcional de lucros à luz da incidência do ITCMD.
Por Alceu Rodrigues Chaves