A Constituição Federal, no seu artigo 156, §2º, I da Constituição Federal, preconiza que o imposto sobre transmissão “inter vivos” (o “ITBI”) “não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.
Em que pese a finalidade dessa imunidade seja fomentar a livre iniciativa e o desenvolvimento econômico, não faz muito tempo que vários Municípios, sobretudo as Capitais, ciosos da relevância crescente do ITBI na arrecadação Municipal, passaram a criar embaraços à efetividade de tal imunidade.
A revogação da imunidade do ITBI concedida à sociedade que não auferiu receita no período de verificação da preponderância, ou então a revogação da imunidade concedida à sociedade que não empregou o imóvel integralizado no fomento de sua atividade, são alguns exemplos de expedientes comumente utilizados pelos Municípios para evitar a perda de arrecadação.
Entretanto, nada foi mais efetivo do que a equivocada interpretação dada ao Tema 796 do Supremo Tribunal Federal, em 05/08/2020.
A decisão do STF, que versou sobre o alcance da imunidade do ITBI no caso de uma sociedade que teve seu capital integralizado com bens imóveis, onde voluntariamente parte do valor deles foi destinada à formação do capital, isto é, à satisfação da subscrição de capital, e parte à conta de ágio (reserva de capital), em que os Ministros do STF entenderam que a imunidade do ITBI abrange apenas a primeira, não abrangendo a segunda, vem sendo maciçamente desvirtuada para justificar a tributação da diferença entre o valor do imóvel destinado à integralização da subscrição do capital e o valor venal dele, definido pelos próprios Municípios.
A fim de esclarecer o objeto da controvérsia dirimida pelo Supremo no julgamento do Recurso Extraordinário nº 796.376/SC, que deu azo ao Tema 796, importante mencionar que o contribuinte em questão recebeu imóveis no valor total de R$802.724,00, sendo que R$24.000,00 destinados à integralização da subscrição de capital e R$778.724,00 destinados voluntariamente à conta de ágio.
Diante desse quadro específico, os Ministros simplesmente decidiram que a imunidade do ITBI se limita ao valor destinado à integralização da subscrição do capital, ou seja, aos R$24.000,00. Os R$778.724,00 restantes, destinados à conta de reserva de capital, seguem sujeitos à incidência do ITBI.
Até aí, nenhuma reviravolta haveria de ocorrer na aplicabilidade da imunidade do ITBI. A situação retratada no julgado, por ter o condão de acarretar a incidência[1] do imposto de renda sobre o ganho de capital sobre a diferença entre o valor do custo de aquisição dos imóveis e o valor de mercado deles, não reflete a realidade da grande maioria das operações de integralização de imóveis por conta da subscrição de capital, que são invariavelmente realizadas pelo valor do custo de aquisição do imóvel, sem a destinação voluntária, pelos sócios, de qualquer valor à conta de reserva de capital.
Contudo, aproveitando-se do enunciado do Tema 796, que diz que “a imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”, e sem querer se atentar para o que foi efetivamente debatido e decidido pelo Supremo, os Municípios passaram a simplesmente impor indiscriminadamente a tributação do ITBI sobre a diferença entre o valor de mercado do imóvel e o valor destinado à conta de capital.
O mais preocupante é que temos visto vários juízes e desembargadores, acredita-se que por ainda não terem se debruçado com o necessário cuidado sobre o inteiro teor do acórdão proferido pelo STF no RE nº 796.376/SC, serem induzidos em erro e levados a chancelar o equivocado entendimento dos fiscos municipais.
Dessa forma, um acórdão do Supremo, que deveria ser festejado por bem esclarecer que a ressalva prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição Federal aplica-se exclusivamente à incorporação de bens decorrente das operações de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, não se aplicando à incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica por conta da subscrição de capital, que é imune em toda e qualquer situação, independentemente da atividade preponderante da sociedade adquirente ser ou não imobiliária, vem sendo utilizado para colocar uma pá-de-cal na pretensão dos contribuintes de se valerem da imunidade do ITBI.
Em suma, uma decisão que dá a correta interpretação à imunidade do ITBI e prestigia a finalidade perseguida pela Constituição Federal, ao finalmente reconhecer que toda e qualquer integralização de subscrição de capital com imóveis está imune ao imposto municipal, independentemente da natureza da atividade preponderante da sociedade, está sendo empregada para, ao fim e ao cabo, fulminá-la.
Espera-se que os Excelentíssimos Magistrados, ao estudarem cuidadosamente o tema, interpretem corretamente o Tema 796 do STF na sua verdadeira essência e correta abrangência.
Assim, a imunidade do ITBI na integralização de capital será revigorada e voltará a gerar os efeitos benéficos pretendidos pela constituição.
Do contrário, tornar-la-á mais uma letra morta no arcabouço constitucional.
Por Alceu Rodrigues Chaves – Chaves e Maran Advogados
[1] Art. 23 da Lei Federal nº 9249/95: Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado. § 1º Se a entrega for feita pelo valor constante da declaração de bens, as pessoas físicas deverão lançar nesta declaração as ações ou quotas subscritas pelo mesmo valor dos bens ou direitos transferidos, não se aplicando o disposto no art. 60 do Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, e no art. 20, II, do Decreto-Lei nº 2.065, de 26 de outubro de 1983. § 2º Se a transferência não se fizer pelo valor constante da declaração de bens, a diferença a maior será tributável como ganho de capital.